terça-feira, agosto 31, 2004

capítulo 6 - Interlúdio

- Um café e um copo com gelo, por favor.
- Para mim um descafeinado.

Peguei em mais um cigarro e calmamente acendi-o entre a ponta dos dedos. A primeira passa é sempre a melhor, pelo que fico sempre calado alguns segundos depois , no momento de prazer que aquele vicío doava. Por vezes fico a olhar para o cigarro aceso, a ver se o mato antes da próxima passa, antes do vício chegar.
Ela, pelo seu lado, dava azo aos seus próprios vícios: observar. Não me sentia minimamente incomodado, era bom saber que não me julgava, e que apenas não conseguia sacudir o que tinha aprendido no curso.
Por vezes, os cafés eram passados entre galhofa e piadas estúpidas servidas por mim e respostas agudar e divertivas por ela. Outras vezes, era um conversa séria e satizfatória, aquelas que existem mesmo para o fundo da alma, para aclamar a sua fome de ser contrariada, de ser debatida.
Este era um dos segundos casos e nem precisei que o café chegasse para o saber.O fumo do cigarro surgia em espirais que se confundiam passados breves segundos, mas era o suficiente para capturarem imagens e pensamentos. Era um daqueles prazeres que não é necessário fumar para se saber, e a cara dela revelava isso.

Talvez estivesse a pensar no próximo capítulo, talvez o fumo do cigarro se misturasse com o fumo do cigarro de Clara, ou com o nevoeiro que poderia surgir na noite de David, ou até mesmo com o metal retorcido, prova de um acidente de talvez uma personagem nova da qual ainda nenhum leitor tinha ouvido falar, nem mesmo eu.
O empregado voltava, clamamente, para depositar a ordem. Também ele tinha os seus próprios vícios e hábitos, que nós já havíamos detectado: o vício de se enganar sempre para quem era o café, o que tornava o trocar de chávenas um hábito trivial e ao mesmo tempo engraçado.

A conversa surgia naturalmente, pelo meio de uns goles de café e de alguns rituais que ambos tínhamos enraizados.
Ela perguntou, escutou, analizou, sugeriu, solucionou, enfim: preocupou-se; e não necessáriamente por esta ordem. A vida tem surpresas: quem diria que tantos anos após nos termos conhecido e depois de tantos anos sem nos vermos poderíamos ser assim amigos?Sim, o facto de se preocupar, honestamente, era o melhor de tudo. Por vezes, em situações específicas, a procura de respostas com alguma ajuda é mais importante que as respostas propriamente ditas.
O relógio de parede parecia ser um relógio de água e seria concerteza, bem mais adequado. Os ponteiros pareciam deixar cair gotas de preto, que demoravam a formar-se e depois, esborratavam ao de leve os números, apenas para estes reaparecerem novos atrás de si. Este processo demorava algumas palavras, algumas reacções e muito pensamento. Deixemos de contar em termos de tempo, tudo durou dois ou três cigarros.

Como estava a história? bem, creio eu, ainda não sei bem o que vai acontecer a nenhum deles; não era bem isto que imaginava.Falavamos agora do vício em comum: escrever, e da solução apra essa vício: entregarmo-nos a um conto a dois.Era engraçado chegar aos capítulos novos e ver tudo mudado, a nossa história de pernas para o ar, e ter de repensar tudo de novo. Era, no mínimo, desafiante.

Ficou a promessa de mais um capítulo para breve, mas desta vez, ela que me perdoe, mas passo a jogada, não por falta de cartas, apenas porque me parece existirem agradecimentos mais importantes a fazer agora.
Pela atitude, sorriso, preocupação e enfim, amizade, o meu muito reconhecido obrigado.
E como os ponteiros não param e o futuro reserva algo de muito bom, siga a história.

quinta-feira, agosto 26, 2004

Capítulo 5 - 007, Licença para esperar

De dentro da sua mala retirou o frasco de comprimidos. Tinha há anos aderido às medicinas alternativas, em grande medida pela maior quantidade de controlo que tinha sobre a sua própria medicação do que na medicina tradicional em que o médico quase sempre decidia autocraticamente medicamentos e dosagens sem explicações de maior.
Tomou duas pílulas de valeriana e respirou fundo, pelo diafragma como lhe ensinara a psicóloga.

Sim, tinha tudo sobre controlo.

Sentou-se. Agora que pensava bem sobre o assunto, todo aquele sistema de entrega lhe parecia um perfeito disparate, fruto de uma mente sedenta de aventura e obviamente vítima de excessos televisivos.

Tinha-lhe feito a vontade porque lhe era perfeitamente indiferente como entregava a informação e recebia os seus honorários, desde que os recebesse, mas agora arrependia-se... Se não tivesse embarcado naquele espírito 007 talvez agora não estivesse na situação em que estava...

Que ridículo. Estava agora na estação, sem saber muito bem o que fazer porque o “seu contacto”, como insistira que lhe chamasse, se tinha deixado levar pela sua fantasia.

Francamente... Que ridículo!

Sim, admitia, o seu modus operandi podia ter semelhanças com o mítico James Bond. Adorava conquistar mulheres e perdia com alguma facilidade o interesse pelas mesmas depois de as conseguir, sendo quase o paradigma daquilo que muitos chamam “Donjuanismo”, uma espécie de doença alusiva ao comportamento do famoso Don Juan de Marco. Quando era mais novo tinha mesmo chegado a procurar ajuda profissional para o seu problema, mas hoje em dia procurava usá-lo em seu proveito, integrando-o na sua profissão.

Profissão... Negócio!

Seja como for, agora tinha um problema sério entre mãos. Tinha a informação e faltava-lhe uma parte do pagamento e executar a entrega. Nem sequer tinha muito bem a certeza daquilo que devia fazer... Ia-se embora? Mandava tudo às urtigas e ia para o Brasil com a sua já avultada fortuna pessoal? E se fosse atrás “do seu contacto”?... Na verdade, apetecia-lhe dizer umas coisinhas pouco simpáticas depois de ter sido deixado especado na estação. Que lata!

David era um rapaz metódico, organizado e ponderado e tinha grande orgulho nessa sua faceta.. Optou por esperar ali por mais notícias. Decidiria o que fazer depois.

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Repreendendo-o com o olhar, disse-lhe frontalmente que ele tinha escolhido o caminho mais fácil.
Ele sorriu maliciosamente.
“Estás apenas a provar um pouco do teu próprio veneno...” respondeu trocista.

sábado, agosto 21, 2004

Capítulo 4 - Geometria e o erro

Acordava lentamente depois de um sono refrescante.
O abanar rítmico pedia-lhe que voltasse a dormir, mas o corpo estava satisfeito, por agora.
Não costumava dormir nos comboios, mas esta noite tinha sido muito mais trabalhosa do que esperava... Dar sumiço a todas as partes da vida que tinha criado era sempre um processo complicado. Não queria ficar com nenhum registo e nenhum contacto, mas não podia simplesmente encher o carro com objectos novos e ir deixá-los à lixeira mais próxima. Isso chamaria demasiada atenção e como tinha aprendido, o passar despercebido era a alma do negócio.
Assim era mais extenuante: um vaivém de uma noite apenas em que deixava alguns objectos num canto escuro da cidade, outros numa instituição, outros vendia-os, etc. O último dia de um trabalho era um bailado que tinha dominado há já algum tempo, após uma anterior experiência desastrosa.
Mas tinha aprendido com os seus erros, e sim, agora fazia-o muito melhor...
Era preciso uma visão científica para observar alguém, escolher a melhor forma de aproximação, conhecer os pontos da sua vida, identificar o alvo, e durante todo este processo matemático, não dar a mínima suspeita e não deixar nada que conduzisse até ele.
Dentro da sua mente, relia estes últimos meses, tirando satisfação de cada momento, de cada pormenor da história que tinha criado, da aura de mistério que o rodeava e que tinha funcionado tão bem com a Clara.
Foi um toque de génio ter colocado a Betencour (era sempre assim que tratava a Ana, por adorar conotação Real do seu nome de família) a aproximá-lo da Clara, ainda que ela nem se tivesse apercebido. Para além do mais, tinha sido divertido optar pela Betencour primeiro. Fora uma agradável surpresa a forma como se tinha entregue nos seus braços, a paixão que demonstrava naquelas noites, tão diferente do que fazia crer quando tinha arranjado que se conhecessem.
Ela era insaciável, apaixonada, bela... nunca chegaria a perceber porque vivia na sombra da Clara, que tinha, essa sim, sido uma desilusão. A Clara, com aquele aspecto tão sensual, não tinha conseguido passar de um trabalho.
Nunca julgar um livro pela capa. Irónico!
Do banco em frente o passageiro observou aquele homem a abrir um enorme sorriso e largar uma gargalhada satisfeita. Obviamente que alguém reagia bem melhor ao atraso que ele próprio.
O comboio entrava finalmente em Lisboa, apareciam os caixotes da periferia, distinguiam-se as roupas nas varandas, como mosaicos desalinhados.
Coisa feia – pensava ele – com o seu espírito matemático. Irregular, desleixado, a noção daquele caos agredia-o, a ele, o geómetra das emoções humanas.
Divergiu para o rumo do comboio, incomodado.
Levava-o até à última fase do trabalho: dar a mala, na estação, como combinado ao seu contacto e depois partir para umas férias bem merecidas, longe dali.
Não se atrevia a ver o bilhete de avião para o Brasil, que ardia no seu bolso do casaco, com medo que alguém identifica-se o seu destino. Em vez disso, contentava-se a sonhar com aquelas férias.
Preencheu assim a ultima parte da viagem, entre praias paradisíacas e refrescos...
Saiu calmamente do comboio, para a estação cheia de gente.
De um relance procurou todos os sinais: um casal de namorados num banco, enrolados num beijo apaixonado que se iria quebrar daí a pouco quando o comboio aparecesse; um grupo a discutir pormenores das férias que passaram; homens a caminhar tristemente para um comboio que os ia levar a casa, sempre o mesmo comboio, como se estivessem parados num calendário que teimava em não rodar as suas páginas.
A estação estava normal, na sua preguiça normal, com as suas pessoas normais, rasgada, aqui e ali por traços de uma azafama efémera. Era apenas mais um dia naquela estação movimenta, ninguém sabia que ele estava ali, com o seu saco de viagem numa mão e a mala que tinha de trocar na outra. Numa mão a libertação, na outra a única coisa que o prendia ali.
O seu contacto não estava ali, ninguém lia “Le fígaro” enquanto espreitava ansiosamente por detrás de uns óculos escuros, com uma mala igual à sua na mão.
Amadores!, pensava para si, aborrecido pela incoerência na equação que tinha traçado, e que com apenas um pequena colaboração daquele contacto levaria a um perfeito e preciso resultado final.
No entanto, não era a única coisa errada ali... A pouco e pouco, os números pareciam mudar de aspecto e a equação tendia a desfazer-se num conjunto de incógnitas.
As empregadas do seu comboio corriam para a limpeza, em contraste com as dos outros comboios que se arrastavam preguiçosamente. Um grupo impaciente de pessoas esperava para entrar e o grupo contrário que se opunha do lado do seu comboio corria dali para fora.
Dois homens de fato de macaco aproximavam-se e ele captou a conversa:
- A merda da locomotiva tá a dar de si e nós é que nos fodemos a fazer horas extra!
Olhou para o relógio e desfez o sorriso da cara, enquanto deixava cair o saco das férias: o comboio estava duas horas atrasado: o seu contacto já não estava ali!

segunda-feira, agosto 09, 2004

Capítulo 3 - As comadres

O que a cativara nele não foram os seus olhos verdes, nem o seu porte atlético que as amigas invejavam. Foram pequenas coisas, pequenos gestos insuspeitos de franqueza, frontalidade e humor, coisas que Ana preservava acima de tudo e que achava incompatíveis com a tendência irritante que alguns homens adquiriam com o passar do tempo de coleccionar mulheres, dar-lhes esperanças e depois abandoná-las.
O que a aborrecia realmente não era ser usada fisicamente, uma vez que se ela consentisse e fosse bom para os dois, não via grande problema. A questão era ser usada como paliativo emocional, como prémio de consolação.

Ana ficara sobretudo desapontada e chocada com o comportamento da amiga que se dizia tão sua amiga, “uma irmã”, e de repente se desatou a atirar ao seu interesse amoroso... E desiludida com o seu “querido”, que era tão maravilhoso, tão maravilhoso mas se tinha vendido por tuta e meia à sua melhor amiga além de se ter insinuado a mais duas ou três.

“Filhos da puta, os dois”, pensara entre a dor e a raiva, enquanto lambia as feridas de ter sido tão vilmente trocada e se tentava consolar.
“Filhos da puta!, filhos da puta!, filhos da puta!”
O que lhe custava sobretudo era a traição de Clara que ela sempre tinha ajudado, sempre tinha defendido... Em troco de literalmente nada ou quase nada porque Clara era um vortex emocional que tinha de sugar tudo para si mesma. Os problemas de Ana nunca eram realmente problemáticos, e as suas angústias nunca realmente importantes...

O certo é também que Ana morria de inveja de Clara em diferentes aspectos. Embora a achasse uma presumida, frustrada e fútil, a verdade é que esta tinha namorado mais, acabado o curso com melhores notas, tido todos os gajos e amigos que Ana ambicionara, era mais bonita que ela e agora ia casar-se com a pessoa que Ana quisera.

Ana pensou sempre que aquilo não ia dar certo, e pode dizer-se mesmo que o desejou, tendo de alguma forma assim sido também corresponsável da tragédia.
Clara era perita em acabar relacionamentos fantásticos pelas razões mais obtusas (chegou uma altura a acabar com um rapaz porque lhe descobriu uma pintas nos olhos e achou aquilo muito anormal: “os olhos são a parte mais importante para mim, simplesmente não conseguiria olhar para ele todos os dias assim.”)... E David, com aquele ar de carneiro mal morto, tinha a escola toda e gostava de espalhar charme onde quer que estivesse...

Eles tinham tudo para ser infelizes e acabar mal começassem.
Então num gesto de vingança mesquinha, Ana decidiu juntá-los... Mas o tiro saiu-lhe pela culatra... Ou pelo menos era o que parecia até David a ter deixado pendurada na Conservatória do Registo Civil.

Agora estava dividida entre a sanguinolenta sensação de vitória mesquinha e vingança e a compaixão e lealdade pela sua amiga... Ah, claro!: e a culpa...

Tentou outra vez ligar a Clara.


Que bela peça lhes tinha saído este David Brown...



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Do outro lado, ela disse-lhe amenamente:
"Começo a achar que ele pode estar morto."
A resposta dele foi um simples "hmmmmm" enigmático por detrás dos seus omnipresentes óculos de sol.
"Seja como for, quem decide agora és tu..."

sexta-feira, agosto 06, 2004

Capítulo 2 - A dúvida


Um calafrio percorreu-lhe a espinha... A porta abria a luz para um quarto irreconhecível...

Foram segundos que se propagaram, pelo meio da surpresa tudo nela trabalhava mais rápido.

Guardou em fotografia a ausência de tudo o que a luz tocava: nenhum casaco pendurado no cabide à direita da porta; mais à frente, a secretáriaevidenciava a falta dos seus livrinhos de apontamentos, do outro lado, nenhum dos cd´s e também o computador havia desaparecido. Ao fundo do quarto, bem iluminado pelo túnel de luz, o fato intacto em cima da cama impecávelmente feito.


Entrou a medo, apertando a chave do carro numa mão, pronta a usar esse último reduto e na outra tentava sentir o seu anel de comprometida. A dimensão desse objecto alterava-se, parecendo agora infinitamente pequeno.


De nada adiantava chamar, apercebeu-se disso ao primeiro passo.

A ausência de todos os objectos de David revelava ainda mais a sua presença: tudo, excepto o que era dele, estava exactamente no mesmo sítio, impecávelmente limpo, geometricamente colocado.

Sempre se tinha admirado dessa característica do David, tão diferente da sua. Era metódico, orgaizado, conciso... tinha um espírito que estava sempre a programar, a fazer planos... Era, até certo ponto, manipulador. Costumava fitar aqueles olhos verdes, sem saber bem o que ele estava a pensar e ainda pior, o que ela devia pensar sobre isso. Aquela aura de mistério que tanto a tinha atraído, assustou-a pela primeira vez, naquele momento.

Olhou para a cama onde repousava o fato, preparado para sair, impecávelmente passado para um encontro a que faltaria.

Parou mais uma eternidade, medida em alguns segundos; não, , não tinha medo da presença de alguém, mas sim da ausência e do que descobriria a partir desta.

Avançou, reparando agora melhor nos objectos que faltavam: os quadros, as pequenas coisas pessoais, ou melhor, impessoais que o David fazia caso de ter, aqui e ali.Deu uma volta rápida ao apartamento, detendo-se em momentos, locais, nas memórias que ainda ali estavam.

Tentava compreender o porquê.

Sim, era indubitável que ele tinha quebrado as promessas que tinham feito de braços nus, com os corpos ainda ofegantes, enrolados um no outro, naquelas alturas em que o cheiro dele penetrava no seu e que se tornava impossível de distinguir.

Estupidamente queria pagar-se da mesma moeda. Procurou na mesinha de cabeceira o seu maço de tabaco que havia deixado há tanto tempo.Foi com um sorriso que acendeu um cigarro, ao mesmo tempo que via os olhos reprovadores dele, naquela mesma cama, com a mão nas suas costas nuas... Nem se lembrava bem das palavras que ele tinha dito, mas agora sabia bem que a tinha convencido a parar, talvez na promessa de mais uns momentos de prazer.

Foi com a primeira passa que veio a primeira lágrima. Não parrou na face, não molhou apenas o canto do olho... Em vez disso percorreu-a rapidamente, rolando por um caminho que conhecia bem.
"Sempre fui demasiado sentimental". Para bem e para o mal, claro. Ria a bom rir, mas também sabia bem chorar...
Passou algum tempo, mais alguns momentos até que da gaveta ouviu o som abafado de um pequeno despertador de pulso. O David tinha o sono leve, quando tinha de acordar, mais uma vez, bem ao contrário do seu.
Teria sido um erro do David ter deixado aquilo ali?
Abriu a gaveta e olhou para ele... Os segundos seguiam-se um após outro, ao ritmo de uma batida do coração. Após uns minutos, os segundos estavam atrasados no relógio das batidas: eram agora duas por segundo, ao mesmo tempo que bem no fundo de si surgia uma dúvida: Porque é que os seus relógios estavam adiantados?
Levantou-se com o relógio na mão, fechou a porta e saiu, mais uma vez com a chave do carro bem apertada na mão, em direcção a casa...