sexta-feira, julho 30, 2004

Capítulo 1 - A boda

  • O dia amanheceu claro e o despertar foi glorioso. Tudo parecia perfeito num dia que também se queria perfeito. Era o casamento de Clara, o final feliz que ela merecia, um sonho, um conto de fadas que agora se realizava. O David tinha aparecido na sua vida como um príncipe encantado, e tinha acontecido tudo tão depressa que três meses depois tinha o casamento marcado. Toda a família se tinha agradado dele, o que por si só consistia um feito digno do Guiness Book of Records: o seu pai era um paranóico de primeira classe que desconfiava de tudo e todos, a mãe era a típica "coruja" e achava que a sua menina era muito inocente e que todos os homens só se queriam aproveitar dela e mesmo o irmão, um diletante irresponsável, muito dado a sentimentalismos baratos e extremamente agarrado à irmã (o que justificava em parte andar sempre à procura de uma boa razão para dar uma surra aos "canalhas" que Clara namorava), se rendeu aos encantos do seu noivo.
  • Espreguiçou-se bem e abriu a janela. Ia fazer como tinha visto num filme em que a protagonista abria a janela, respirava fundo o ar da manhã e fazia um discurso lindo de morrer sobre a sua vida e as mudanças esplendorosas que iam acontecer agora que era o ponto de viragem, mas o telefone tocou e Clara nem teve tempo de sentir o cheiro da manhã da baixa portuense.
"Estou sim?"
"Bom dia noivinha!!!" - respondeu do outro lado entusiasta a voz da sua melhor amiga, Ana.
"Olá madrinha, quer dizer, testemunha, que o casamento é no civil. Que tal estás?"
"Isso pergunto eu!" - respondeu a rir-se - "Liguei para saber como estavas... Tipo se já estavas acordada eheheheh"
"Era um bocado demais, adormecer para o meu próprio casamento, não achas?"
"Estou a brincar, estou a brincar... Na verdade, não te zangues comigo que eu já sei que tiveste um trabalhão para convencer a tua mãe a não ir para aí de manhã... Mas, de certeza que queres ir sozinha para a Conservatória? Não preferes que eu vá ter contigo e ajudar-te agora de manhã?"
"Poça, Ana! Tu e a minha mãe, irra! A sério, muito obrigada, mas não quero. É pá... Desculpa lá estar-me a passar, mas quero mesmo estar sozinha, será que tem de ser tudo como manda a tradição?"
"Ok, ok, pronto... Não me mates já..." - e voltando a brincar - "Agora vê lá mas é se não te voltas a deitar eheheheheheh"
"Não, não, vou-me vestir... E já não estou muito adiantada..."
"Ok, vai lá... Beijinhos e até já, ó "noiva em fuga"... da família!!! eheheheheheh"
"Beijo!"
  • Olhou para o relógio.
  • Agora estava realmente acordada e qual não foi o seu espanto ao ver que estava atrasada cerca de uma hora. Tomou o duche à pressa, bebeu uma chávena de leite frio, comeu uma torrada e vestiu-se para a grande ocasião. Tudo pronto, olhou satisfeita para o seu relógio de pulso outra vez e marcou um novo recorde: só se tinha demorado uma hora, metade do tempo programado para se arranjar: isto é que era rapidez!
  • Fechou a janela, vestiu o casaco, pegou na maleta e, tal como na história da Cinderela, ouviram-se as badaladas do relógio de sala que a mãe tinha insistido que ela levasse para o apartamento.
“Espera aí...”
  • O relógio estava programado para só tocar ao meio-dia, já que fazia uma tal barulheira de hora a hora como era suposto, teria sempre o senhorio à perna. Mas nesse caso... Olhou de novo para o relógio de pulso... Ui! Como era isto possível? O seu relógio de pulso e o seu telemóvel estavam adiantados uma hora! Caramba! Tanto trabalho e agora ia ter uma hora morta!...
“No problem. Aproveito Pego no carro e depois logo se vê... Como é que raio eu teria ficado com os relógios adiantados? Se calhar, foi o David ontem á noite, com medo que eu me atrasasse como de costume...”
  • Não valia a pena insistir naquele assunto. Se tinha conseguido acordar sem despertador, antes mesmo de alguém telefonar, não ia ser nada de especial varrer um pensamento insignificante como aquele da mente.
  • Pegou nas chaves do carro e foi ver o mar.
  • Escusado será dizer que Clara era uma romântica arrebatada daquelas que choram sempre no fim de “E tudo o vento levou”, quando aquele irresistível Rett Butler deixa Scarlet O’Hara (sua ídola) e esta se ergue sozinha para um futuro incerto em que, com toda a certeza o reconquistará.
  • O tempo passou depressa. Quando deu por si, já só tinha um quarto de hora para chegar ao Registo Civil e achou ir bem depressinha. Morria de pena por não se casar na Igreja, de branco, como toda a vida sonhara, montanhas de convidados, um véu de quatro metros e cinco damas de honor a entrar triunfalmente numa igreja decorada de flores cor de rosa, mas que fazer? O David insistia naquela coisa de “Eu sou ateu e não me obrigues”, por isso, desistiu embora tivesse no fundo, no fundo, uma pontinha de esperança de um dia vir a concretizar esse seu sonho.
  • Chegou ao Registo Civil atrasada como sempre, já lá estava o pai, a mãe, o irmão e a Ana, mas que faziam eles o quatro ali à porta com aquela cara de enterro? E onde é que estavam os convidados do David? É certo que ambos concordaram que seria uma cerimónia pequena e ele lhe tinha contado que não tinha família, mas alguém ele tinha que ter convidado, nem que fosse um freira do orfanato, alguém para ser sua testemunha...
“Olá, então?, já cá estou, só estou dez minutos atrasada...”
“Estás tu e está o teu paspalho.” – respondeu o irmão secamente. “Raios me partam se não é hoje que lhe vou às trombas!... Ai dele se se atrever a deixar-te aqui sozinha! Pego na caçadeira e ...”
“Está calado, Gonçalo. Pára de dizer asneiras, está bem?” Interrompeu-o autoritariamente Ana.
“Já sabes como é o teu irmão. Sempre cheio de coisas e mais coisas, mas é tudo fogo de palha. Alem disso, o David não te deixaria pendurada de pois de tudo o que passou para te fazer o pedido, não achas?”
“Realmente, não deve ter sido fácil convencer os violinistas a esperar a meia hora que eu me atrasei escondidos atrás da sebe do restaurante...” – disse Clara um pouco aliviada, num sorriso maroto, piscando o olho à sua amiga.
Passados vinte minutos de angústia e conversa de chacha com a Ana, em que o irmão permaneceu incrivelmente silencioso e os pais só falaram entre si, veio cá fora a juíza dizer que meia hora de tolerância era o máximo concedido pelo Registo e que tinha outros casamentos a realizar, “Lamento muito”.
  • Ana fincou as unhas no braço de Gonçalo para evitar que este começasse a disparatar, pondo a noiva mais nervosa ainda. A mãe não disse nada, mas os seus olhos rasos de água, bem abertos para que nem uma lágrima de raiva e decepção escapasse, mostrava bem o tipo de sentimentos que lhe iam na alma. Só o pai teve coragem de se chegar a ela e a abraçar, corado ao máximo numa expressão que não dava bem para perceber se de raiva, se de vergonha.
    Clara, essa, parecia não se ter apercebido da situação. Estava absolutamente apática. Não tinha reagido. Nem uma lágrima, nem um suspiro, nem nada. Libertou-se dos braços protectores do pai, virou costas e começou a andar em direcção ao carro. Enquanto tirava as chaves da carteira, uma lágrima escorreu-lhe pela face abaixo contra a sua vontade. Ligou o carro e os quatro piscas e foi de gás à tábua direitinha a casa do David.
  • Tocou à campainha. Bateu à porta e ninguém respondeu. Chamou por ele e continuou sem resposta. Finalmente, antes de virar para o histerismo, girou a maçaneta da porta e... Surpresa!