sábado, agosto 21, 2004

Capítulo 4 - Geometria e o erro

Acordava lentamente depois de um sono refrescante.
O abanar rítmico pedia-lhe que voltasse a dormir, mas o corpo estava satisfeito, por agora.
Não costumava dormir nos comboios, mas esta noite tinha sido muito mais trabalhosa do que esperava... Dar sumiço a todas as partes da vida que tinha criado era sempre um processo complicado. Não queria ficar com nenhum registo e nenhum contacto, mas não podia simplesmente encher o carro com objectos novos e ir deixá-los à lixeira mais próxima. Isso chamaria demasiada atenção e como tinha aprendido, o passar despercebido era a alma do negócio.
Assim era mais extenuante: um vaivém de uma noite apenas em que deixava alguns objectos num canto escuro da cidade, outros numa instituição, outros vendia-os, etc. O último dia de um trabalho era um bailado que tinha dominado há já algum tempo, após uma anterior experiência desastrosa.
Mas tinha aprendido com os seus erros, e sim, agora fazia-o muito melhor...
Era preciso uma visão científica para observar alguém, escolher a melhor forma de aproximação, conhecer os pontos da sua vida, identificar o alvo, e durante todo este processo matemático, não dar a mínima suspeita e não deixar nada que conduzisse até ele.
Dentro da sua mente, relia estes últimos meses, tirando satisfação de cada momento, de cada pormenor da história que tinha criado, da aura de mistério que o rodeava e que tinha funcionado tão bem com a Clara.
Foi um toque de génio ter colocado a Betencour (era sempre assim que tratava a Ana, por adorar conotação Real do seu nome de família) a aproximá-lo da Clara, ainda que ela nem se tivesse apercebido. Para além do mais, tinha sido divertido optar pela Betencour primeiro. Fora uma agradável surpresa a forma como se tinha entregue nos seus braços, a paixão que demonstrava naquelas noites, tão diferente do que fazia crer quando tinha arranjado que se conhecessem.
Ela era insaciável, apaixonada, bela... nunca chegaria a perceber porque vivia na sombra da Clara, que tinha, essa sim, sido uma desilusão. A Clara, com aquele aspecto tão sensual, não tinha conseguido passar de um trabalho.
Nunca julgar um livro pela capa. Irónico!
Do banco em frente o passageiro observou aquele homem a abrir um enorme sorriso e largar uma gargalhada satisfeita. Obviamente que alguém reagia bem melhor ao atraso que ele próprio.
O comboio entrava finalmente em Lisboa, apareciam os caixotes da periferia, distinguiam-se as roupas nas varandas, como mosaicos desalinhados.
Coisa feia – pensava ele – com o seu espírito matemático. Irregular, desleixado, a noção daquele caos agredia-o, a ele, o geómetra das emoções humanas.
Divergiu para o rumo do comboio, incomodado.
Levava-o até à última fase do trabalho: dar a mala, na estação, como combinado ao seu contacto e depois partir para umas férias bem merecidas, longe dali.
Não se atrevia a ver o bilhete de avião para o Brasil, que ardia no seu bolso do casaco, com medo que alguém identifica-se o seu destino. Em vez disso, contentava-se a sonhar com aquelas férias.
Preencheu assim a ultima parte da viagem, entre praias paradisíacas e refrescos...
Saiu calmamente do comboio, para a estação cheia de gente.
De um relance procurou todos os sinais: um casal de namorados num banco, enrolados num beijo apaixonado que se iria quebrar daí a pouco quando o comboio aparecesse; um grupo a discutir pormenores das férias que passaram; homens a caminhar tristemente para um comboio que os ia levar a casa, sempre o mesmo comboio, como se estivessem parados num calendário que teimava em não rodar as suas páginas.
A estação estava normal, na sua preguiça normal, com as suas pessoas normais, rasgada, aqui e ali por traços de uma azafama efémera. Era apenas mais um dia naquela estação movimenta, ninguém sabia que ele estava ali, com o seu saco de viagem numa mão e a mala que tinha de trocar na outra. Numa mão a libertação, na outra a única coisa que o prendia ali.
O seu contacto não estava ali, ninguém lia “Le fígaro” enquanto espreitava ansiosamente por detrás de uns óculos escuros, com uma mala igual à sua na mão.
Amadores!, pensava para si, aborrecido pela incoerência na equação que tinha traçado, e que com apenas um pequena colaboração daquele contacto levaria a um perfeito e preciso resultado final.
No entanto, não era a única coisa errada ali... A pouco e pouco, os números pareciam mudar de aspecto e a equação tendia a desfazer-se num conjunto de incógnitas.
As empregadas do seu comboio corriam para a limpeza, em contraste com as dos outros comboios que se arrastavam preguiçosamente. Um grupo impaciente de pessoas esperava para entrar e o grupo contrário que se opunha do lado do seu comboio corria dali para fora.
Dois homens de fato de macaco aproximavam-se e ele captou a conversa:
- A merda da locomotiva tá a dar de si e nós é que nos fodemos a fazer horas extra!
Olhou para o relógio e desfez o sorriso da cara, enquanto deixava cair o saco das férias: o comboio estava duas horas atrasado: o seu contacto já não estava ali!